Caminho de Santiago por Kika Cedro
Kika Cedro: publicitária, residente em Florianópolis
Kika é uma querida amiga e seguidora do nosso blog, lembrei da sua experiência durante o Caminho de Santigo, a qual acho que poderá servir de dica pra quem pretende faze-lo, e pedi pra ela contar aqui pra nós:
Fazer o Caminho de Santiago de Compostela sempre foi a viagem dos meus sonhos, e um dia ela se realizou. Dois meses de pesquisas e planejamento até a certeza de poder concretizá-lo. Antes de viajar, decidi que uma preparação física seria muito importante, então me dediquei a isso pra resistir bem ao caminho. Li que o Caminho é você quem faz, e ele se inicia a partir do momento que tu decide ir, no meu caso, 1 ano antes. O plano era, percorrer os últimos 300km do Caminho Francês em 15 dias.
Meu vôo chegou em Barcelona, onde fiquei hospedada uns dias na casa de amigos, depois parti de trem com destinação para León, onde iniciei a caminhada até Santiago de Compostela. Mnha primeira viagem de trem foi no mínimo bizarra, precisei ficar com as pernas suspensas por praticamente toda a noite, pois 2 garotas tinham uma mala gigante que não cabia no compartimento reservado as bagagens… e assim, vi o dia amanhecer sem conseguir descansar. O trem era velho, dei azar, foi o único trem precário que peguei, todos os outros eram ótimos, limpos e largos, mas este…foi decepcionante, porém extremamente divertido.
(clique nas fotos para ampliar)
Sem poder esticar as pernas no trem
Chegando em León, fui direto saborear um delicioso bocadilho de queijo e ramón acompanhado de café com leite. Sem palavras para um lanche tão simples e saborosíssimo, foi o primeiro de muitos, sempre tinha comigo um destes na mochila para comer durante o Caminho, que diz o ditado se faz: com pão e vinho.
E assim começou minha caminhada:
Dia 1 – León – Villadangos del Páramo
Desci do trem e, ao contrário do planejado, não fui dormir e descansar no hostal, caminhei até o Hospital de San Marcos, ponto físico inicial de minha jornada, comecei a seguir as setas, que cruzaram a cidade até atingir a rodovia, por onde caminhei em paralelo.
Neste trecho caminha-se sempre por pequenos pueblos, ou paralela a rodovia, então não se sente só. Paradas em pontos comerciais para comprar algum lanche e continuei a caminhar. Um pouco de garoa, mas era meu primeiro dia, então a adrenalina era meu combustível e, eu só pensava em chegar em Villadangos. Meu primeiro erro, não controlei a ansiedade. Ao chegar no albergue, muito limpo e arejado, arrumei meu beliche, ganhei de um peregrino um gel para dor nos tornozelos e fiz minha primeira refeição peregrina, e ai sim… senti o tamanho da minha fome e cansaço. Dormi cedo (afinal, já fazia + de 36h que não dormia).
Dia 2 – Villadangos del Páramo – Astorga
Acordei antes das 5h, a maioria dos albergues tem horário para se retirar, normalmente é até as 7h. Há um respeito pelo sono alheio, no caso, evita-se levar sacolas plásticas e fazer o menor barulho possível. E foi assim, que sai junto com outros peregrinos por volta das 6h e iniciei o caminho até Astorga ainda de noite. Usei minha lanterninha, estava um pouco frio, mas logo que começou a aparecer as primeiras luzes da manhã, me vi num trecho cercada de amoras silvestres, li que se pode comer as frutas pelo caminho, e assim eu fiz, completando meu desjejum.
O 2° dia foi mais pesado na caminhada, minha primeira vez na mata, fiquei sozinha em vários trechos onde só ouvia pássaros e o som dos meus passos. Inacreditável não sentir medo, mas foi tudo muito tranquilo.
Trecho indo pra Astorga Chegando em Astorga
Porém trecho sem comércio, graças ao meu guia fui prevenida e tinha bocadilho, sementes e pólen em pó para ter energia. Muitas subidas com pedras, calor, mochila pesando e uma vontade louca de cantarolar. E cantarolar qualquer coisa que me viesse a mente. E assim cheguei a Astorga, que é encantadora. O albergue era da igreja, e ficava ao lado do jardins, próximo as muralhas da cidade antiga.
Depois de me instalar, fui passear pela cidade, e me encantei com cada detalhe. Jantei num restaurante que fica na praça principal em frente à catedral que tem um relógio imenso e aqueles bonecos que andam e batem no sino na hora das badaladas. Legal e barulhento.
Voltei para o albergue, dormi e quando acordei percebi que haviam roubado meu guia… infelizmente há esse tipo de contratempo, mas Alfredo (o senhorio do albergue) me deu um outro guia deixado por um peregrino dias antes.
Dia 3 – Astorga – Santa Catalina de Somoza
Acordei antes das 6, e com o incoveniente do roubo do guia, demorei a sair de Astorga mais do que esperava, o guia é bom, mas eu me preparei por 1 ano com o outro, sabia aonde encontrar tudo nele, e o entendia perfeitamente, fora minhas anotações nas páginas que continham histórias e curiosidades sobre os locais. No novo guia não havia nada disso, e para ajudar, comecei a sentir as dores musculares, costas e tornozelos. Foi um dia ruim, improdutivo, só consegui percorrer metade do trecho do dia (deveria ir até Rabanal del Camino), mas caiu uma tempestade com direito a raios, trovões e nuvens beeeeeeeeem pretas, a ventania destruiu minha capa de chuva, e me obrigou a parar em Santa Catalina de Somoza, onde fiquei no albergue El Caminante, o mesmo que um conhecido ficou anos atrás, e valeu a dica Gu, pois é um ótimo albergue em uma cidade que parou no tempo, acredito que quase ninguém pare ali, preferem ficar em Astorga e depois seguir até Rabanal… ainda bem que parei, pois peregrinos que chegaram depois estavam totalmente desgastados e cansados por causa da chuva.
Santa Catalina antes do temporal Albergue em Santa Catalina
Dia 4 – Santa Catalina de Somoza a Riego de Ambrós
Segundo o guia, eu caminhei 31,3km… tentei compensar o atraso do dia anterior. O dia foi puxado, atravessei montanhas, muitas paisagens diferentes, e quase ninguém no percurso. O dia amanheceu com sol, mas
muitas nuvens escuras no céu anunciavam chuva, e eu sem capa. Ventava frio, mas fui em frente, não queria atrasar mais, nem deixar de caminhar um dia por causa da chuva. Se outros iriam, eu também iria. Passei por El Ganso, onde encontrei um pai e uma filha franceses, tinham as pernas tortas, mas eram iguais e caminhavam juntos. Achei bonito eles dois.
Rabanal é um vilarejo de uma ladeira, e depois vem a montanha, só subida até Foncebadón, cidade com muitas histórias de pessoas queimadas vivas, bruxas e padres… enfim, ali eu não ficaria de jeito nenhum. O tempo piorou de novo, mais vento e mais frio, porém sem chuva, passei pela Cruz de Ferro, local onde os peregrinos deixam suas pedras, como símbolo dos problemas que trouxeram de suas casas, é um local de muita espiritualidade e silencio, muitos ficam ali por horas meditando ou fazendo suas orações. Deixei minha pedra, observei em respeito e segui em frente.
Muito vento e frio Rabanal del Camino
Afinal, entre eu e o próximo albergue, havia uma montanha. E que montanha. Com a chuva do dia anterior, muita lama, umidade e frio. Acho que a maioria dos peregrinos seguiram este trecho seguindo a rodovia. Eu com meu guia improvisado me meti pela montanha. Arriscado, não encontrei ninguém, se caisse ou me machucasse, não sei quando me achariam, enfim, tudo deu certo graças a Deus. Atingi o ponto máximo do dia, 1520m de altitude, acho que isso explica o vento e o frio. Depois foi descida, mas em terreno de pedra e terra, meu tornozelo sentiu isso depois. Meu tênis é ótimo, comprei um modelo masculino, mesmo sendo meu número correto, ele é um pouco maior, assim nada me apertou, não tive bolhas, mas as descidas, destruiram as unhas dos dedões (naquele verão eu não usei sandálias, a menos que estivesse com esmalte roxo ou preto). Uma coisa interessante, enquanto subia ou estava no meio da montanha, estava frio, vento e nuvens escuras, depois do topo, no quando iniciei a descida, havia sol e céu aberto, podia ver Ponferrada e as pequenas vilas existentes no meio do nada.
Montanha, despenhadeiro Descida e vista Ponferrada
Cheguei em El Acebo, onde tinha planejado dormir, mas o albergue já estava cheio e barulhento, e as outras 2 opções da vila não me agradaram, decidi caminhar mais 4km até Riego de Ambrós, afinal neste trecho cruzei com a rodovia novamente e optei por descer por ela, e não mais pela trilha. Meus pés agradeceram. Riego é um vilarejo só de casas, 1 albergue e 1 restaurante… quando cheguei adorei saber que o albergue ficava logo na entrada da vila, porém, o único restaurante ficava do outro lado, na saida, ou seja, mais ou menos uns 700mts de distância, desejei tanto uma tele-entrega naquele momento. Mas foi ali que bebi um delicioso vinho acompanhado de um bom prato de sopa e depois arroz e bife com batatas. Me arrastei de volta, e devo ter desmaiado.
Dia 5 – Riego de Ambrós – Ponferrada
Como sempre, acordei antes das 6 e lá fui eu. Antonio, um peregrino português que dividiu o quarto comigo, disse que iria até Villafranca, e combinamos que se eu conseguisse nos encontraríamos lá, nos despedimos com a típica saudação buen camino, e fui. O caminho até Molinaseca é no meio de montanhas (de novo), muitas pedras e o fiz sozinha novamente (meu guia nunca mostrava a rodovia, e muitas seguiam por ela, afinal , caminhar no asfalto é mais fácil, mas no fim, acho que preferi a montanha, mais silencio, melhor pra mim).
Era sempre eu, meu bocadilho de ramón e queijo, o mato e o dia amanhecendo. O legal era olhar para trás e identificar as torres eólicas, a torre de León e perceber que estavam tão altas e distantes, mas que eu já havia passado por lá, e que nesse momento outros estariam vindo. Uma satisfação de vitória que não tem preço. Nem eu acreditava que estava conseguindo e fazendo acontecer. Mas tudo tem seu preço. O esforço do dia anterior somado a vontade de conhecer o castelo dos templarios, me fez parar em Ponferrada e descansar o dia.
A perna direita era a que mais incomodava. Vi muitas pessoas que encontrei no dia anterior, parando em Ponferrada para descansar o dia. Também re-encontrei a filha e o pai franceses, o padre que jantou em Riego comigo, e vi outros rostos familiares. Logo, não me achei fazendo nada de errado. Caminhei uns 11km e cheguei pouco depois do meio-dia. O albergue em Ponferrada estava fechado, o que me fez ir até o castelo, deixei minha mochila na guarita e por lá caminhei. No outro guia eu tinha as histórias sobre este castelo, e como lamentei não te-lo ali para me ajudar a lembrar de tudo. Só sei que estava num local que desde o início eu queria estar, e foi muito bom.
Castelo de Ponferrada
Era dia de festa na cidade, soltavam rojões que imitavam tiros de canhões dados antigamente em tempos de guerra pelo castelo. A vista é enorme, e no dia seguinte, quando sai da cidade, ainda ouvia os “tiros” que davam mesmo estando já uns 4km distante da cidade. No albergue recebi uma massagem nas pernas de um médico, que me aconselhou a parar por uns 2 dias por causa das dores. Não segui o conselho dele. Eu queria era chegar.
Albergue em Ponferrada Albergue em Ponferrada
Dia 6 – Ponferrada – Villafranca del Bierzo
O trajeto não é difícil para quem está 100%, poucas subidas, e muitos trechos em asfalto. Mas a perna direita não ajudou muito, principalemente depois de Cacabelos. Encontrei um casal, não me lembro da onde eram, mas a mulher carregava uma mochila gigante e sentia dor nas costas, já o marido tinha uma mochila hiper pequena. Mas iam super animados ladeira acima, ela parando a cada dois passos, e ele a cada 4 para esperá-la. Segui, cada um faz seu caminho de acordo com seu tempo e força. Cheguei no albergue municipal e corri pro banho, depois fui comer e os encontrei, com a mesma roupa e sujos. Dei um olá, e sentei em outro canto.
Villafranca del Bierzo Albergue em Villafranca del Bierzo
Lembro de ter escrito no diário, sentada num jardim central da cidade, em frente a uma fonte, uma paz sem igual, enquanto esperava o mercado abrir da siesta, ou seja, as 17h apenas. Minha intenção era caminhar apenas metade do trecho do dia seguinte, e parar em Vega de Valcarce, onde há um albergue de brasileiros, vou pela estrada, assim se não conseguir seguir tento uma carona até lá.
Dia 7- Villafranca del Bierzo
Chuva e frio e ainda não amanheceu. Do albergue até a praça onde escrevi um dia anterior, levei mais de meia hora tentando andar, a canela direita estava o dobro do tamanho da esquerda, e a sensação que tinha era que o osso iria quebrar quando sustentava o peso nela. Parei na praça, pensei e procurei o posto médico. O médico disse que eu estava com tendinite, não poderia caminhar por 1 semana, e deveria fazer repouso. Me deu um dorflex espanhol, digamos, e colocou uma faixa tipo salompas mas com talas que evitavam que minha perna dobrasse. E dessa forma voltei pra praça, chorei e acabei decidindo pegar o ônibus de volta para León.
Alguns passageiros foram solidários comigo, acho que devem ver isso mais vezes do que eu, porém é triste ver os peregrinos seguirem viagem e você voltar. Pela janela revi trechos que passei, sensações e cheiros e uma tristeza imensa, sei que não completei o caminho por culpa minha, por não ter respeitado meu tempo e controlado minha ansiedade, mas foram os 6 dias mais maravilhosos que tive até hoje, recomendo a qualquer um fazê-lo, pois não há experiência melhor.
Minha dica pra quem está organizando uma viagem no Caminho de Santiago, é de fazer a caminhada em modo gradual, não corram como eu, porque pode só se prejudicar.
Boa Viagem…….
graça Paim
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Já sonhei muito com esta viagem, mais vai ficar para próxima encarnação, não tenho mais pique.
12 de novembro de 2011Maravilha de relatos.
Damares Paim / Autor
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É, tem que ter gás mesmo pra fazer esse percurso, apesar que conheço gente com mais de 60 anos que fez numa boa, mas são pessoas que já estão acostumadas a fazer altas caminhadas na montanha.
12 de novembro de 2011kika
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Graça, encontrei alguns casais mais idosos fazendo o caminho. Um fazia 300km por ano, estava no último trecho, caminhavam devagar, escolhiam as rotas mais simples, sem muitos obstáculos naturais, e se nao fosse possível, eles faziam o trecho de trem ou ônibus. Ou como eu, inicie de um trecho que vc acredita seja possível completar. Nada é impossível, quem sabe nesta encarnaçao vc nao vá? abraço
18 de novembro de 2011